sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Depois de tomar algumas garrafas de uísque blake label

Primeira garrafa: Shakespeare, Pessoa, Blake, Plath. Alguma poesia da experiência: a experiência da poesia. Derrubo copo após copo e vou ruminando, reunindo, revirando, remoendo imagens sobre os poemas e os poetas em questão. Copo após copo e sigo minando os campos seguros da mente, da ordem lúcida: a experiência urgente do poema interrompe as freqüências do cotidiano e lança – como um lança-chamas? – luzes sobre meus movimentos-por-aqui, ou o que chamamos de existência. (r)Existo como um animal estranho em diálogo permanente com tudoaomeuredor, numa conversa com todos e todas: todocorpoquercontato. As palavras dos outros animais estranhos me dizem dos deslocamentos, dos percursos, das sendas, das trilhas na vida: as palavras dos outros me dizem das palavras dos outros: o ouro do outro: a experiência no mundo. Alguma ponte frágil entre eu e tu, via linguagem: nos peitos o poente do sentido e a aurora do significado. Eu e tu.
Segunda garrafa: Hamlet se pergunta: “ser ou não ser?”, Pessoa nos diz, grita “não sou nada”. Eu fico perdido entre não ter asas e não saber nadar. A imagem de Montaigne surge como um assombro, como o som de um assobio: ele me diz que fala do que conhece melhor = fala de si. Não sei bem se o caso é de conhecimento. Talvez seja mais pertinente dizer apenas: falar, sem espanto ou milagre, do abismo, de dentro pra fora, do eu, do ego, da pele, dos poros. A poesia (o texto criativo) é a experiência do flerte com o ambiente e com as pessoas, a poesia é o esfregar-se na carcaça do mundo, a poesia é a construção de um canto de pássaro sem pássaro. Ou um corpoemáquina. O poema, a confissão, a escrita com vida (biografia) é a procura da possibilidade da partilha do sensível. A poesia é incomunicável, a experiência é incomunicável. E deliciosamente e absurdamente o mais delicado contrário: a poesia é a orgia, a comunhão, a participação, o entredois.

Terceira garrafa: as visões do rio, o ruído do rio. Ouço tudo que roço, todo som tem pele. Visões da garota que se matou e o poema da garota que se matou. Sidarta quis morrer e ouviu o rio: Ôm, Ôm, Ôm, Ôm, Ôm, Ôm, Ôm. A respiração de Brahman. A vigília, o sono e o sonho. A linguagem do absoluto, do universo: o infinito deitado. A garota se matou. Carne e osso, não há nada lá. Somente o devaneio da visão, apenas o devaneio que rasga o véu de maia e nos diz que estamos lá onde não há nada ou apenas um passo antes do abismo. A conexão com o outro, a conexão consigo, a não-conexão, a confusão, a fusão, o são. O sim e o não. O não. Como no koan do imperador que sonha ser borboleta e da borboleta que sonha ser o imperador. A lucidez de quem está para morrer, a morte de quem não delira. Como a sabedoria da pele e a corrupção do tempo. Os animais estranhos e o desajuste: tatear o lugar no mundo, a (r)existência do sentido e a vertigem do desencanto. O poema da garota que se matou e a experiência da garota que se matou, a cristalização da garota numa fotografia e a voz da garota numa fita magnética. A garota não está aqui. Outra garota virá. Eu não estarei aqui. Outro garoto virá. E.

Quarta garrafa: Uma garota dormindo. Outra entra no quarto em silêncio, na ponta dos pés. Elas se comunicam, um diálogo silencioso, como dois animais que, como dois animais quando. Escrevo um poema, escavo um poema. E logo a poesia bate asas e cria mundos. Leio um poema e rapidamente a poesia ri e fica muda. A poesia é uma orgia, um êxtase: um caroço da experiência na membrana verde do espaço. Leio Blake: energia é eterna delícia. Blake vê o infinito numa flor selvagem. Eu vejo Blake num copo de uísque e observo animais que buscam o rumo de árvores com frutas alcoólicas. O animal sem nome pintou poemas nas paredes de Lascaux. Ele viu animais. Um velho xamã pinta seu tambor cósmico e me diz do frio, do rio e do raio. O xamã toca o tambor e uma águia mítica paira acima de sua cabeça. Um homem moderno cata uma gravata e uma pedra paira acima de sua cabeça. O poema fala da pedra e da águia. Eu vejo os dois animais no espelho (eu e tu), vejo todos eles e imagino meus ossos. No bar, uma garota sorri enquanto escrevo e derrubo outro copo. À noite, falamos de Pessoa, de Blake, Shakespeare, Plath. À noite não falamos e. A poesia é o jogo, a engenharia construindo pontes, a carne habitada, o orgasmo. A garota diz que já subiu uma montanha enquanto sobe em mim. Depois lê um poema sobre a montanha: projeto meu rosto com pedras. E de repente a experiência de subir montanhas me parece com um respirar ofegante. A poesia e a experiência da poesia. O rio de palavras destes animais. Rio da palavra destes animais enquanto escrevo e rio de mim mesmo. Um poema, mesmo. A experiência, mesmo. E o silêncio: alguma imaginação. Algumas garrafas de uísque dizem o mundo que leio num poema asteca, como um vadio animal estranho. Blake, Pessoa, Shakespeare, Plath estão mortos. A experiência de Blake, Pessoa, Shakespeare, Plath está morta e renasce: tempo mítico, cosmogonia, via linguagem. O poema, o corpo do pouco que permanece por aqui, entre os lírios que ainda não foram queimados pelo tempo, entre os leões que nos arranham os estômagos por dentro. Ponte, parte: poema do parto: a turva visão do que foi, do que o tempo rói, a revisão do que dói. A minha experiência no mundo. Ou ficar mudo. Ou tudo. Ou tu. Absolutamente eu e tu, em tudo. E no nada. Nonada. Andada em bando. Quando? Não sei e ando, ando, ando, lendo e revirando os ossos da experiência do bando, os que viram a carcaça e já riram, sumiram nus. Enquanto não morro, ando. No bando, com sol, chuva ou nublando as nossas cabeças com o como, o porquê, o quando. Nu, ando.
memória:

plantação repleta
de gafanhotos.