sábado, 13 de janeiro de 2007

fonte

fonte

nada. primeiro o silêncio da noite. depois das horas de afeto, se levantou como um grande e estúpido animal faminto. o corpo latejava o fogo. os poros. os poros. sabia que não veria aquele corpo outra vez. os poros. cheirava o doce daquela carne, tateava sobre os ossos salientes. não lembraria do rosto depois de virar a esquina. escreveu na palma da mão uma letra: P. estava marcada na pele solta, como fazem as crianças da cidade que encontram o espinho da laranjeira e passam a tarde desfiando os caminhos da mão. a pele levantada, branca, opaca. Dobrou a esquina. Esquecera o corpo, como havia imaginado. Tirou um cigarro do bolso da camisa. Tirou um isqueiro do bolso. Tirou a cabeça do mundo. Tirou a visão. Encontrou repouso uns 30 passos depois, num bar ainda aberto. Eram 08h e as gentes passavam apressadas para o trabalho. Sentou. Fumou o cigarro. e depois outro e ainda mais um. Um gato se aproximou das pernas dele, sentado na calçada do bar, com a cerveja na mão. xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, , , . O sol subiu bem rápido, parecia pendurado nos ombros. O estomago estava revirando. Fome, fome. O gato agora estava irritante. xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, xiuiu, , , . Correu, sem pedir a conta. Cruzou com uma dupla de policiais gordos e bigodudos e pensou que nunca tinha visto um policial que não fosse gordo e bigodudo. Estava em casa. Os pés, as pernas tinham-no arrastado para o banheiro. A água caía e o corpo lembrava de estar com a cabeça entre as pernas da menina durante toda a noite. Toda noite. bebendo na fonte, eletricamente. Lembrou do gato enroscado na perna. Viu que era o bichano, que seria o bicho, e lamberia a cidade toda, como uma criança diante do mundo-aberto. Lambeu a água, caindo no rosto, dormiu. Não acordou quando um corpo nu se aproximou e deixou a fonte em sua boca. O chuveiro cantava uma canção muito bonita e a água era doce, muito doce. De alguma maneira, sabia que a vida tinha começado ali, bem ali, na fonte.


Nenhum comentário: