domingo, 14 de janeiro de 2007

Qualquer estrada é logo ali!


Como sempre fico sonolento depois do quinto trago, criei muitos jogos para lutar contra morpheus. Mirar as estrelas com a brasa do cigarro era um dos meus preferidos, mas com o tempo passei a dormir quando chegava à constelação de sirius. Quando, por sorte, estava com o gravador da faculdade, gostava de registrar barulhos estúpidos, como o da madeira verde estalando no fogo ou o da televisão fora do ar. Ruídos. A mão rolando sobre a pedra do isqueiro. Ou então abandonava o gravador no rec, junto da roda, enquanto ríamos por nada, na session. Nesse caso, cuidava de anotar o dia da gravação.

Dia desses encontrei uma fita de dois anos atrás. “ha ha ha hahhaaa o corpo não sabe de nada”, alguém disse. O corpo não sabe de nada e eu vou me virando contra o sono. deambulações. A voz falou em correr com o acaso, em sair sem norte, sair de si, por aí. “O acaso por senhor e por nada”. Ser como um riocorrente, como disseram. Um dharma. Qualquer estrada é logo ali! Depois de ouvir a fita, conversei com deus e criei uma nova brincadeira. A cidade aberta contra meu peito, meus dentes engolindo a noite, meus olhos pesados e vermelhos. O corpo esgotado, a brasa queimando os dedos, o pensamento sempre em outro lugar.

Escolher um prédio ao acaso, ter por lastro um deus frágil, fiar-se no improviso ordinário. - chama Lúcia, por favor. - qual o andar, senhor? - não lembro. Faz tempo que não a vejo. Diga que é o José. - pode subir, senhor. - obrigado, deixa pra lá, passo aqui outra hora. hahaa hhaa haa. Não gostava da noite que abria as pernas na primeira tentativa. Parei na praça em frente ao prédio para acender mais um.

Mantra. As regras do jogo mudavam ao sabor do vento, correria como quisesse. Correria paraondefosse, o que seja. Fiz silêncio para não-ouvir. Antes de ouvir (ouvir é atenção). A seiva desmedida e sem direção da vontade. Uma criança passando com os cabelos azuis e o doce comprado na esquina, a mudez de um carro-vulto-pluma, a intuição, a intuição. Eu poderia pintar um quadro como xul solar. Vejo borges, aceno para as flores ao rés-do-chão. A senhora passa apressada com o vestido para o teatro de variedades. Rua do Sol.

Engolido no diálogo do si-mesmo, flanando, sem pretensões. Rua do Sol. Depois da ponte, na curva, o sonho e o sono. Número 26. Podemos enxergar o número que desejarmos - palavra da razão império dos sentidos. A razão da palavra não cabe na visão. Ed. Abelhaa. Passo pelas grades. A entrada, uma sala cinza e azul, tem umas gravuras feitas com carvão. O porteiro deve ter ido viajar e nunca mais voltou. Desrazão. Vi um filme sobre prédios-rizomas, mas as gravuras não pareciam de acordo. Onde estavam as Abelhaas?

Acho que passei doze minutos com o dedo no botão do elevador até perceber que se tratava de um adesivo, desses baratos, que a gente rouba na papelaria do bairro. O elevador, agora via claramente (sic), era uma pintura com uma cabeça de vaca desenhada no canto superior esquerdo, olhando toda persona que pusesse o indicador no adesivo. Subi pelas escadas. Quarto andar.

Na escada encontrei um gato, eu acho. Outra testemunha diria que o gato me encontrou e eu dei um salto para trás, batendo as costas na parede e me sentando em seguida - não importa. No chão, percebi que no bolso da minha camisa tinha um. Acendi. Todas as portas possuíam adesivos baratos, com um slogan em vermelho “abelhaas vivem” ou coisas parecidas. Ainda estava no segundo andar e minhas pernas já estavam mais fechadas que meus olhos.

Terceiro andar, porta aberta, fumaça. Três mulheres fumavam num bongô. Olharam para mim com menos curiosidade do que para a coluna de fumaça que subia iluminada por uma luz azul. Segui adiante, como se fosse um vulto. Quarto andar. Me aproximei da janela procurando o sono da urbe. Dormir com a cidade, entre suas peles, também é jogo. A cidade e o som de seus corpos. Uma cidade tem tantos corpos quanto um sonho. Vi um outro gato saltando do segundo andar. Caiu em cima de uma senhora que passeava com seu esquilo sobre os ombros. Gatos e esquilos são amigos quando não está chovendo, me disse uma vez o senhor chinês que vendia literatura na esquina de casa.

Cité. Cinzenta. Cinzenta e fria e dormente e cínica e clínica e claustro e coma e cama e carne e coisa e caos. etc etc etc. Uma chuva se anuncia sobre as ruas e eu tenho pena dos gatos e dos esquilos. A felicidade vai cair como um raio e fulminar os senhores sérios e apressados. Quem foge da chuva se molha e a minha brasa ilumina a cidade. “A justiça divina é uma criatura com álcool nas mãos”, disse uma voz feminina. Você é uma abelhaa?

Não me virei para ver o oráculo, a portadora do som. Continuei conversando, a brasa penetrando os dedos, o vapor barato e a chuva doce escorrendo pelas paredes. Me senti como um orfeu sem história. Você? “quando sair do prédio apague as luzes”, disse. Minhas costas estavam sendo arranhadas, mas eu não queria olhar para trás. Vo.. passava a mão por meus cabelos e começou a cantar uma canção. “O medo não tem direção e nós sabemos da porta atrás dos olhos. É cedo para cair na vida e o zu zu zzzuuum das mãos mói as sementes de ontem. Para nós é só o começo. Para nós é só o abismo e a voz”

A brasa queimou meus dedos e eu derrubei o cigarro. Deu tempo de ver o carro do corpo de bombeiros segurar a ponta. Um vento frio correu pela espinha do edifício. Desci as escadas. Uma senhora me bateu com o guarda-chuva. “café?” Na praça meninos e meninas correm contra o tempo, pisando as poças d’água. Tudo se esboroa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Viajei.